Escrita e conceito: como a língua reflete a realidade

22/01/2017

Em inglês, escrever deaf e Deaf é fazer referência a, pelo menos, dois grupos distintos. Será que em português faria diferença escrever surdo e Surdo?

Linguagem, espelho da língua

Poderia o fato de uma letra em maiúsculo ou minúsculo alterar o sentido de uma palavra? Bem, parece que em inglês, sim. Quando se escreve "deaf" dessa forma, estamos pensando no grupo de surdos que, em algum momento da vida, ficaram surdos ou nasceram surdos. Já quando se escreve "Deaf", com "d" maiúsculo, falamos das pessoas que fazem da cultura surda e não necessariamente são surdos. Ou seja, é o grupo de pessoas que está mergulhado no comportamento da comunidade surda e em alguma língua de sinais. Fazem parte desse grupo: intérpretes, tradutores, professores, alunos, família de surdos, e qualquer outra pessoa que saiba língua de sinais e esteja imerso no universo surdo.

O caso dos CODAs

Sediada nos Estados Unidos, nos anos 1980, a fundação da organização internacional CODA (Children of Deaf Adults - filhos de pais surdos) nasceu tendo como principal finalidade promover temas experienciados por filhos ouvintes de pais surdos ao redor do mundo. Sem fins lucrativos, a fundação visa alcançar seu objetivo através de conferências, publicações, bolsas de estudo, desenvolvimento de recursos e angariação de fundos.

Os filhos de pais surdos tendem a ser bilíngues e biculturais, pois crescem dentro de famílias surdas e aprendem a língua de sinais e a língua oral desde pequenos. Porém, não raramente, tornam-se intérpretes de seus pais, sendo mediadores bilíngues, e mais tarde, é muito comum que se tornem intérpretes profissionais. Ou seja, os Codas não são surdos, mas estão intimamente envolvidos com a cultura surda e com a língua de sinais. São os típicos Deaf, com "d" maiúsculo.

Brasil: surdo e Surdo funciona?

Se a escrita em inglês explicita tais diferenças, em português, isso já não parece acontecer. Porém, um olhar mais profundo revela diferentes "grupos" de surdos. Isto é, a referência de "surdo" costuma ser generalizante, como sendo aquele que nasceu surdo, na maioria das vezes, com surdez profunda.

No entanto, além de nem todos os surdos terem o mesmo grau de surdez - pois a escala segue de leve, moderado a profundo, os surdos não são todos iguais. Isso significa que, muitas vezes, a única característica comum existente entre um surdo e outro é a surdez e nada mais. Não compartilham a mesma língua, os mesmos costumes, a mesma história. Quais seriam esses surdos?

Costumo dizer que existem, pelo menos, dois grupos de surdos: os deficientes auditivos (DA) e os surdos-surdos: duas nomenclaturas que quase falam por si só. O primeiro grupo, DA, são aqueles surdos que nasceram surdos em uma família de ouvintes e, com ou sem a consciência da Libras e a cultura surda, a criança cresce sendo oralizada. Portanto, ela é surda, porém dentro da cultura ouvinte, partilhando,  de um jeito ou de outro, a mesma língua e os mesmos comportamentos.

Já o grupo de surdos-surdos engloba aqueles que nasceram surdos, mas independentemente da família ser ouvinte ou não, são surdos cuja língua materna é a Libras. Ou seja, são surdos-surdos, com identidade e cultura próprias, que se diferem da comunidade ouvinte.

Libras? Por quê?

Como vimos, nem todo surdo se identifica com a cultura surda, e tampouco sabe a Libras. Apesar desse acontecimento estar atrelado à problemática da divulgação da língua de sinais, isso não é tudo.

O conhecimento sobre a Libras e tudo o que a envolve, muito mais do que parecer estar restrito, demanda a conscientização do que realmente é a surdez e suas consequências. E quando pensamos em campanhas, palestras, etc., pensamos, necessariamente, no público "família".

Muitos surdos, por crescerem sendo oralizados, não despertam o interesse pela língua de sinais e, geralmente, têm uma imagem da Libras como sendo um "apoio", uma "bengala" ou qualquer coisa que remeta à "deficiência" - por isso, a dificuldade da aceitação da Libras e seu universo.

Além disso, para a maioria dos surdos oralizados, o aprendizado de uma nova língua não se apresenta de uma forma persuasiva, uma vez que já estão inseridos e adaptados à cultura ouvinte. Aprender uma língua de sinais seria como olhar novamente para a "deficiência auditiva" dentro de uma comunidade na qual o surdo já possui identidade e "aceitação". Soa como um retrocesso.

Aceitar & respeitar: o binômio da inclusão

Fonte: Google Imagens

Acima de qualquer denominação de grupos, é fundamental que respeitemos o querer e o não querer do surdo. Tanto um quanto o outro são passíveis de explicações para que aconteçam.

Compreender que a configuração de vida contribui (e muito!) para que um surdo fique à vontade ou não com o universo da Libras e tudo, é aceitar e respeitá-lo. Talvez a realidade da comunidade surda nunca tenha sido apresentada para ele da forma correta. Talvez ele nunca tenha conhecido um amigo surdo para se identificar.

Talvez inclusão não seja sobre fazer A ou B, mas sim, sobre: se temos A, o que fazer?; se temos B, como agir? Ou seja, se um surdo foi oralizado e tem o português como língua materna, o que fazer? Impor o aprendizado de Libras? Mas isso não é inclusão, está mais para uma ordem. Resta-nos respeitá-lo, e gentilmente, convidá-lo a conhecer um pouco mais sobre o universo surdo. E se um surdo tem a libras como primeira língua, como agir? Obrigar toda a comunidade ouvinte a aprender a língua de sinais? Isso também não é inclusão, parece intolerância.

Portanto, não basta escrever surdo e Surdo. Além das pessoas que participam da cultura surda como intérpretes, tradutores, professores, etc., temos um grupo de surdos que desconhece tal mundo ou até sabe que existe, mas está distante demais para alcançá-lo.

Nosso dever não é impor isto ou aquilo, mas apresentar as possibilidades outras e deixar o próximo passo - a escolha - a quem realmente cabe decidir: o surdo.


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